Descriminalização do aborto: por que você deveria se informar sobre essa pauta
Conversamos com especialistas pra entender o impacto dos últimos acontecimentos nas nossas vidas
Por: Natália Guadagnucci
Diante dos últimos acontecimentos no Brasil e nos EUA que trouxeram o tema da descriminalização do aborto de volta ao centro do debate público, decidimos compartilhar mais informações sobre esse assunto — que, você pode até não perceber agora, mas traz consequências gigantescas pra sua vida e pra de todas as outras mulheres. Mais do que uma discussão moral ou religiosa, essa é uma pauta que diz respeito à ciência, e que tem sido usada há anos como uma ferramenta política e de manutenção de poder, pra que as mulheres tenham pouco ou nenhum controle sobre seus próprios corpos.
É por isso que, sendo uma plataforma de beleza com um público majoritariamente feminino, sentimos que precisamos conversar cada vez mais sobre o assunto. Nesta newsletter, você vai encontrar um resumo dos casos mais recentes envolvendo a questão do aborto, além de uma investigação, com a ajuda de especialistas, de como funciona a lei no Brasil hoje, quais os próximos passos em relação ao direito ao aborto seguro para todas e quais os impactos políticos e sociais disso tudo daqui pra frente.
Vale dizer que, especialmente neste ano eleitoral, a gente acredita muito no poder da informação pra tomar boas decisões — sejam elas em âmbito pessoal ou na hora de apertar os botões das urnas.
Os últimos acontecimentos nos EUA
A Suprema Corte dos EUA suspendeu a decisão conhecida como Roe vs Wade, nesta sexta-feira (24), que garantia o direito das mulheres ao aborto no país desde 22 de janeiro de 1973. De agora em diante, os direitos à interrupção da gravidez vão ser determinados pelos estados, a menos que haja uma intervenção do Congresso — vale dizer que quase metade dos estados já aprovou ou está em vias de aprovar leis que proíbem o aborto.
Mas como isso aconteceu? Por que essa decisão era tão "frágil"?
Para entender mais sobre o assunto, conversamos com Marina Ruzzi, advogada e co-fundadora do primeiro escritório de direitos das mulheres e LGBTQIA+ do Brasil. "Em primeiro lugar, quando a gente fala de garantia e conquista de direitos, é preciso saber que existem várias formas de consegui-las. A principal delas, e a mais duradoura, é por meio do Legislativo, que seria mudar a Constituição. Só que diante da composição dos congressos [que estão mais conservadores] seja aqui ou nos EUA, os movimentos sociais têm entendido a via do Judiciário como mais viável. A questão é que uma decisão judicial pode ser revista com a mudança da composição dos ministros da Corte ou com a mudança da mentalidade da sociedade como um todo, por isso é tão frágil", ela explica.
"No Brasil, o caminho judiciário é uma estratégia que a gente tem tentado usar, e já existe a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, criada pelo PSOL, circulando pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que já avançou bastante. O intuito é de descriminalizar o aborto no Brasil por entender que a proibição viola os direitos humanos das mulheres e é discriminatória. Só que, mesmo que a gente conquiste isso no STF, é uma decisão que pode ser revogada com uma simples mudança legislativa. É um sistema muito complexo, ainda mais pelo fato de que o aborto tem sido super mobilizado por uma ala conservadora e religiosa, que tem se inspirado inclusive na mesma forma de organização dos movimentos estadunidenses. É importante dizer ainda que, tanto nos EUA quanto no Brasil, a conquista do casamento igualitário entre pessoas LGBTQIA+ também foi uma mudança feita pelas Supremas Cortes, e está sujeita aos mesmos riscos da descriminalização do aborto. Nos EUA, já existem atos mostrando que essa pode ser a próxima conquista a ser revertida por essa composição mais conservadora da Suprema Corte."
De que forma a decisão dos EUA impacta no Brasil?
Segundo Marina Ruzzi, o movimento nos EUA pode influenciar os caminhos brasileiros especialmente em relação à mobilização de grupos religiosos e conservadores. "Nos EUA, os movimentos religiosos elencaram a criminalização do aborto como uma das suas principais agendas, e eles trabalharam pra isso de diversas formas, inclusive atacando de maneira violenta clínicas que realizam aborto, elegendo parlamentares da ala mais conservadora do partido republicano e fazendo com que políticos se comprometessem com essa pauta. E é um movimento que conta com uma exportação desse tipo de técnica de mobilização social, de lobby, que tem sido usada aqui no Brasil também, em especial pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), que tem a Damares Alves [ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Governo Bolsonaro] como uma das fundadoras", diz a advogada.
"Numa perspectiva global, é um momento de muitas contradições. Na Argentina, as mulheres conseguiram a conquista do direito ao aborto pelo Congresso, portanto garantida por uma mudança na lei. Já quando a gente olha pra conquistas como a do México e da Colômbia, elas foram feitas pelas Supremas Cortes, e isso traz as mesmas fragilidades sobre as quais falamos."
Os últimos acontecimentos no Brasil
Nas últimas semanas, veio à tona um caso que aconteceu em maio deste ano em Santa Catarina. Na ocasião, a juíza Joana Ribeiro Zimmer impediu uma menina, na época com apenas 10 anos de idade, de realizar o aborto a que tinha direito por ter sido vítima de um estupro que a deixou grávida. Durante a audiência, a juíza e a promotora do caso, Mirela Dutra Alberton, tentaram induzir a criança a desistir de interromper a gestação.
O caso, revelado pelo site The Intercept, conta ainda que o hospital exigiu uma autorização judicial pra que o procedimento fosse feito, com a justificativa de que a gestação já havia ultrapassado 20 semanas — a lei, no entanto, não define prazos ou requer autorização judicial pra que o procedimento aconteça. Depois de uma recomendação do Ministério Público Federal pra que o hospital garantisse o direito ao aborto legal a todas as pacientes, independentemente do tempo de gestação ou do peso do feto, a menina conseguiu interromper a gestação no último dia (23).
O que diz a lei brasileira hoje?
A lei no Brasil permite a interrupção da gestação em três situações: pra vítimas de violência sexual; em casos de anencefalia do feto e quando há risco à vida da gestante. Em casos de gravidez decorrente de estupro, a lei não exige a apresentação de boletim de ocorrência, exame do IML ou autorização judicial — basta o pedido da mulher. Ainda assim, há obstáculos judiciais ou a recusa de hospitais que dificultam o acesso a esse serviço.
A advogada Marina Ruzzi informa que "caso o hospital ofereça resistência, existe a opção de fazer uma denúncia na ouvidoria do SUS. Mas como o prazo é algo imprescindível por causa do tempo da gestação (e quanto mais tempo passa, mais difícil é conseguir fazer o procedimento), normalmente a solução que a gente tem é entrar com uma ação judicial pra efetivar esse direito — e aí podem acontecer situações como a de Santa Catarina, que depois chegou a ser revertida no tribunal. É justamente esse o problema de o aborto não ser legalizado, porque vão se criando obstáculos burocráticos mesmo que eles não estejam na lei."
As violências no controle reprodutivo das mulheres
Também nos últimos dias, aconteceu o vazamento de um caso sigiloso envolvendo a atriz Klara Castanho, de 21 anos. Vítima de um estupro que a engravidou, ela optou pela entrega espontânea do bebê pra adoção. Antes e durante o processo, Klara foi vítima de ameaças e descaso da equipe médica, que compartilhou suas informações particulares com jornalistas de celebridades. Depois que seu nome foi exposto, Klara divulgou uma carta em seu perfil no Instagram relatando tudo o que viveu.
Para Ruzzi, o caso só evidencia a incoerência dos argumentos contra a descriminalização do aborto. "O argumento da juíza de Santa Catarina e de boa parte da mídia e de grupos conservadores é a de que seria possível 'aguentar mais um pouquinho' pra entregar o bebê pra adoção, mas quando a Klara foi exposta por ter passado por esse processo sigiloso, ela foi atacada com o falso argumento de que havia cometido abandono de incapaz e muitas outras atrocidades. Então a questão não é o bem estar da criança, e sim o controle reprodutivo e social das mulheres. Se você é estuprada, você tem a obrigação não só de criar seu filho, mas de ter afeto e disponibilidade pra ele."
Ela continua: “Sobre o compartilhamento dos dados particulares, todos os dados médicos, assim como dados de advocacia, são sigilosos, então essa enfermeira cometeu uma infração ética e também um crime, que é a divulgação de segredo profissional. As pessoas envolvidas podem ser denunciadas e penalizadas nos seus respectivos conselhos de ética, e inclusive perder a sua carteira de atuação. A Klara também poderia entrar com uma ação cível de danos morais por causa de tudo o que ela passou, tanto contra o hospital, que é objetivamente responsável pelas atuações de seus profissionais, quanto contra os jornalistas.”
Como funciona a entrega voluntária para adoção?
Como informa Ruzzi, existe um princípio do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e da Constituição que é o de garantir, sempre que possível, que a criança fique dentro do seu seio familiar, e quando isso não puder acontecer, que ela fique com sua família estendida. “Só caso isso não seja possível é que ela vai pra uma casa de abrigamento pra entrar no sistema de adoção. Desde 2017, a gente tem uma lei que facilita um pouco esse processo da entrega voluntária pra adoção: basicamente, a mulher gestante, ou que acabou de parir, pode fazer essa entrega mediante um processo na Vara da Infância e Juventude, informando por que ela não tem condições de cuidar daquela criança.
No caso da Klara, a criança era fruto de um estupro, e obviamente havia muito sofrimento envolvido, mas existem casos em que a mãe não tem condições materiais de garantir a subsistência da criança, ou tem um quadro psiquiátrico que a impossibilita de exercer essa maternidade. Durante todo o processo, ela tem reuniões com equipes de psicólogos e assistentes sociais que dão um parecer a respeito do caso. Se houver um pai de registro, ele também é consultado a respeito, porque a vara vai tentar encontrar alguém nessa família estendida que possa assumir a criação. Só então ela entra pro sistema de adoção. E isso não é crime, pelo contrário, é necessário pra fazer tudo legalmente. Também não constitui abandono de incapaz — abandono de incapaz é deixar o bebê numa caixinha na frente de um hospital e ir embora. Todo esse processo existe justamente pra garantir que a criança seja realocada em uma família que tenha condições psicológicas e materiais de criá-la.”
Caso isolado?
"As duas situações, se fossem em momentos separados, em dois países, dois períodos históricos, poderiam ser vistas como tragédias isoladas. Na verdade, elas não são isoladas dentro do contexto brasileiro, elas são peças dessa arquitetura que é a operação da misoginia e do patriarcado", afirma Debora Diniz, pesquisadora e professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB).
Onde é possível fazer um aborto legal e seguro hoje?
De acordo com a lei, qualquer hospital que ofereça serviços de ginecologia e obstetrícia deve ter equipamento adequado e equipe treinada pra realizar abortos nas situações em que a interrupção da gravidez é permitida (citadas acima). Mas, na prática, nem sempre é assim. Só durante a pandemia, 45% dos hospitais que faziam aborto legal pararam de atender as mulheres, segundo dados do Mapa do Aborto Legal, uma iniciativa da ONG Artigo 19 pra monitorar e compartilhar informações públicas sobre o tema. No site, é possível encontrar os principais hospitais a realizarem o procedimento no país.
O impacto da pandemia
Debora Diniz destaca que o Brasil foi o epicentro do mundo da morte materna por Covid. "Precisamos nos perguntar o porquê, já que o vírus era o mesmo, as mulheres grávidas no puerpério estavam em todas as partes, então por que no Brasil se matou duas vezes mais mulheres do que em todos os outros países juntos? Nós publicamos um estudo na [revista científica] The Lancet Americas mostrando que a moral da criminalização do aborto é uma das principais barreiras impostas, fazendo com que a manutenção da gravidez seja mais importante do que os cuidados com a mulher", pontua. Com o agravamento da pandemia, também houve demora no atendimento e nas internações dessas pacientes.
Descriminalização do aborto no Brasil: quais são os próximos passos?
Como sopram os ventos no Brasil em relação à descriminalização do aborto legal e seguro para todas? Para a professora Debora Diniz, uma possível mudança no governo do país poderia trazer um ambiente mais favorável a essa decisão. "Uma mudança de governo tornaria esse processo mais propício no sentido de [fazer correr] a ação pendente no Supremo e de existir um clima político no Brasil de compreensão da importância dos direitos das mulheres e de como as violações a esses direitos, a violência e a misoginia estão conectadas", explica.
Em outros anos eleitorais, a descriminalização do aborto também foi pauta e acabou fazendo que alguns candidatos, como a ex-presidente Dilma Roussef, tivessem que voltar atrás em suas opiniões favoráveis. Será que o cenário político mudou? Na opinião de Debora, "nas últimas eleições, estavam mais em pauta os temas relacionados à sexualidade, como o kit gay, que fazem parte das táticas bolsonaristas e autoritárias de escandalização das questões e de escape da política. Esses grupos estão tentando fortemente pautar o aborto, mas dá pra notar que o país está mudando, e mudando muito rápido. A repercussão pública de casos como o de Klara Castanho, da menina de 11 anos ou da procuradora que sofreu violência mostram que o cenário não está bom pros influenciadores do bolsonarismo que fazem perseguição, chacota. Eles estão testando, colocando um termômetro de como isso pode operar, e não está caindo bem. Ainda não é possível prever, mas eu não sei se vão conseguir.”
Onde mais se informar sobre esse assunto?
Selecionamos alguns episódios recentes de podcasts que ajudam a entender o cenário atual do aborto no Brasil. Se tiver mais sugestões, é só escrever pra gente no nosso grupo do Telegram.
O aborto (e a disputa política nos EUA) - O Assunto - 4 de maio
#64 - Aborto, trauma e alívio - Debora Diniz e Aleta Valente - 451 MHz - 27 de maio
A criança, a juíza e a dificuldade do aborto legal no Brasil - Durma com essa - 21 de junho
A decisão que derrubou o direito ao aborto nos EUA - Café da Manhã - 27 de junho
Mulheres: direitos reprodutivos sob ameaça - O Assunto - 28 de junho
Que texto bem escrito, deu gosto de ler. Parabéns à autora.
Que texto bem escrito, deu gosto de ler. Parabéns à autora.